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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Post mortem – A peça (velada e re-velada) Lugar onde o Peixe Pára pelo contexto fúnebre.


Depois da morte do Denirso, o rio mudou..! Todos mudaram. A peça começa pelo fim, é como a cobrona que morde o próprio rabo, Ouroboros. É a vida contínua. Não há passado ou futuro, mas um presente contínuo num cotidiano caipira.
Um toco de cigarro apagado foi achado na beira do rio e depois Denirso foi visto na pedra grande, mas agora...onde foi se enfiar em sua rebeldia? Foi sair de casa para vender as pamonhas e perdeu-se! A tal moça do rio de quem os pescadores se regalavam nas prosas. Cabelos longos, lábios carnudos, pele clara e um canto melodioso, que encantava jovens incautos e os afogava no rio. O jovem ficou enfeitiçado por aquele “espírito feminino”. Em todas as meninas pairava a imagem enevoada da moça. À noite na beira do rio ainda calmo, tentava fumar “como homem” seu toco de cigarro afogando-se com a fumaça, enquanto os cães ladravam em sua consciência, nos compassos dos grilos e aves noturnas, perturbando-o. Era o seu momento de lazer, fumar um toco de cigarro que catara às escondidas no chão da cozinha, pensar a vida de cócoras revendo suas caraminholas, esquecer e até relevar a surra que o pai lhe dera em excesso de zelo, podia até amar a figura paterna e despótica, neste momento. Ali era livre para amar ou para morrer e também sonhar com a moça do rio que mexia com suas entranhas, num fogo abrasador. Iria atrás da moça do rio. E foi.
Numa luta sem pega, o rio jogou o moço em suas águas para o fundo, onde ninguém mais viu. Lutar com o rio é bobagem. É como lutar consigo mesmo, com as próprias sombras, dar braçadas em vão e resistir à própria auto-imagem num mundo sem chão, no turbilhão dum abismo de morte. O menino foi envolto nas águas turbulentas, numa luta desigual. Uma moça toda nua, toda sua, que atraía o ingênuo adolescente para as águas profundas. Debateu-se, debateu-se contra os turbilhões até segurar-se em uma pedra, exausto. Rolou nas águas, acuado pelo rio e voltou à margem, mas na segunda vez que tentou achar a moça nas águas o rio engoliu seu corpo num golpe violento de ciúme. O rio voltou mais bravo e o carregou para sempre. Acalmou-se então sob o luar da noite, no canto fúnebre em seu leito. Ia-se nas suas águas profundas o afogado, em cortejo, jazido em mortalha e levado pelas almas dos pescadores mortos. Denirso nunca mais foi visto.
Onde está o corpo? O pai foi avisado. Campeiam pelo mato a noite toda até a madrugada, gritando o nome do moço, lá cada palmo foi rastreado. Só restou a camisa numa curva do rio. O rio calmo boiara a camisa do morto, o corpo não. Os caipiras e suas famílias se dirigiram em procissão a casa da família enlutada, em cântico fúnebre. No altar caseiro, a imagem da santa e ajoelhada, em humilde prece a mãe, junto das filhas Deleise e Dora, que não suportam a oração vigilante e a espera de Romirda. Aconchegam-se sonolentas no chão que a mãe reza de joelhos, pedindo clemência a Deus e aos santos, prostrada. A mãe sofredora, como sacerdotisa, sacrifica-se na dor pela perda prematura do filho no rio. Nem homem era ainda! Retém a si as vestes úmidas que a morte rejeitou, como se plasmasse novamente em seu ventre o ente roubado pelo rio, enquanto Dora e Deleise dormem e os caipiras, bêbados, velam a ausência do corpo perdido no rio. E a cobrona?!!! A ouroboros? A história vem com a onda, em espiral, do fundo do rio.