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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Cigarra e a Formiga

– Por uma nova fábula -

Para onde foram as cigarras? O seu cantar se ouvia da sala de aula. Um guizo divino no entardecer. Um cantar para o sol, um zunido que ninguém cala. Do tronco cantam a sós ou em grupo. Fabulosas. Viram-se desengonçadas no tronco, para a esquerda e direita e levantam as ancas para cantar. Uma coreografia? Uma dança antes de começar? Começam e param, por vezes, como que afinando e vão num crescendo até conquistar os horizontes com um fôlego fenomenal.
Cantam, enquanto as formigas passam em fila, carreando folhas verdes para o formigueiro, sem dizer um pio. Andam em frente e só se comunicam entre si. Se algum animal ou homem lhe obstruir o caminho, picam, desviam, fazem novas trilhas. São previdentes, armazenam alimento para o inverno. Já as cigarras vivem somente em seu tronco e pelo tempo que Deus lhes dá, as formigas pensam que o seu trabalho lhes dará vida longa, mas não sabem cantar...
Intervalo. Com um graveto a professorinha revolvia as folhas no chão. Um vento invernal soprava, as folhas verdes foram ceifadas pelas formigas. A trilha delas pelo chão escondida sob a folhagem ressequida levavam a vários formigueiros. Agora só alguns troncos despidos permanecem clamando aos céus. A moça procurava algo no chão, absorta, até que parou com as duas mãos no rosto, não se importando com a fina garoa sobre si, no oceano dos sentimentos líquidos. A alma feminina que chora por aquelas cascas, que caiam insepultas, como que atiradas sem espírito. Cigarras.
Bosque de inverno. Cessou ali o guizo das cigarras. Ia chegando o frio. Sob as folhas secas viam-se alguns insetos variados, como formigas, a transitar numa trilha escondida, enquanto as cigarras silenciaram nos troncos. Um banco de madeira velho, curtido, de onde se vê o cenário abatido pelo vento úmido. Farfalham a esmo as folhas secas, sem viço, mortas, amareladas cobrem o solo, num tapete multicor a espera de outras do alto que se ajuntam no chão, cheirando a pessegueiro velho. Somente ouvem-se breves silvos, tímidos, de algum pássaro solitário, em despedida, que se vai rápido, fugindo do frio inóspito, pelas alturas lúgubres dos céus de inverno, some. Silêncio.
Debaixo dessa realidade bucólica, sob a terra a vida continua, seres habitam, além dos olhos do observador. Lá como o bosque de La Fontaine. Sob folhas velhas, um jardineiro atento verá uma trilha de formigas, uma linha sinuosa em desuso, esquecida, um caminho abandonado. Já se recolheram junto à panela aos pés da rainha. A cigarra cansou, já não canta, esgotaram-se suas forças, foi se agarrando sem fôlego na casca da árvore. Exaurida, vai cair como as outras, como num salto.
Por fim, a cigarra desceu da árvore, com dificuldade, com fome e sede. Caminhou pela trilha vazia até o formigueiro. Reconheceu as formigas que passavam todas as manhãs sob sua árvore com folhas às costas, admirava-as. Ainda na porta a formiga deu-lhe um agasalho e um frutinho. Depois que comeu e bebeu, a rainha das formigas quis vê-la. Abraçaram-se. Trocaram protocolos. A formiga secretária trouxe um contrato para que a cigarra pudesse assinar. Ficaria desde que, no verão cantasse para a rainha botar seus ovos com mais alegria. O inseto não aceitou o emprego, voltou sem assinar o papel e preferiu morrer contando no bosque, nas velhas árvores de uma escola rural, a ser escravo das formigas daninhas.

Ofereço aos professores e a minha professorinha que fazem trabalho de formiguinhas e tem de ter o fôlego de cigarras.

3 comentários:

  1. Como se tivesse ouvindo Etta James com uma garrafa de uísque jogado na poltrona da sala com a TV chiando. Solidão. Como dói. Mais um belo texto.

    Estive numa correria danada esta semana. Tive que abandonar o blog. E mais uma dica. Assista no cinema O Lutador com Mickey Rourke. Daria-lhe o Oscar. Um dos filmes sobre solidão mais cruéis que já vi, junto com Paris, Texas. Abraço

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  2. A solidão pode ser criativa, quando nos conectamos com o Universo, sem o chiado, sem o ruído da comunicação, com a seiva humana. Vou colocar uns textos mais alegres. Ah, comentei com você sobre a peça do Neto Invisiveis. Você irá gostar, é de pessoas a margem da sociedade e mostra o lado humano de todos nós, um catador de latinhas boa praça, uma catadora, um travesti e uma prostituta contando suas experiências. O interessante e que dá força ao dramaturgia é que foi um trabalho de pesquisa, entrevista in loco, palavras dos próprios. Acho que os atores fizeram um excelente laboratório e usaram bem a luz. Um abraço.

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  3. Camilo, adoro quando encontro em seus textos dedicatórias explicitas à Luzia. É uma sensação ADORÁVEL!!! Beijos "prôceis".

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