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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009


O coroinha e o estilingue

O brinquedo de menino peralta era o estilingue. Joãozinho mirava o alvo e pá! Caía andorinha, tiziu, o que tivesse asas derrubava. Só não acertava em avião, devido à altitude e em anjo de igreja, que era um alvo parado. Até no cachimbo do avô já lançara um projétil. O velho correu atrás do neto, mas, hilário, perdoou o depositário de seus genes, também fora peralta em criança.
Apesar de todas as malcriações, era o coroinha, sob protesto de uns e outros o padre mantinha o herói das travessuras a servir lhe no ministério sagrado.
O padre bonachão ouvia o assunto, sério na frente dos reclamantes, mas ao adentrar a sacristia ria à só. Não tivera tempo de ser menino, não teve tempo de fazer peraltices; na idade da razão, os pais lhe colocaram no seminário católico. A vocação veio depois do fogo das tentações, sem mulher e sem filhos, velho, tornou-se o que era. Padre de vila.
O padre solene, olhando para o povo, de mãos juntas, não perdia os olhos do acólito inapto. Se fosse pegar a água antes do vinho, comunicava-se em código e por caretas que pegasse o vinho. O povo não percebia. As pessoas, em estado de graça vinham mansas e puras de coração, viam pelos olhos da fé o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Cristo e o peralta com pintas de sol, com olhar de soslaio, de quem reconhecia suas vítimas: a mulher do barbeiro de quem quebrou a vidraça, a moça que acertou o traseiro e outros tantos casos, perdoados em confissão particular.
As coisas iam bem até que quis acertar uma andorinha em vôo dentro da Igreja e quebrou um vitral. Ali era a casa de Deus, esbravejou o padre ao saber pelo sacristão. Ia chover dentro e até vir o pedreiro... Ia ficar caro. O povo que mantinha o templo com dízimo ia cobrar dele a falta de cuidado com o coroinha, que mantinha aos serviços do altar. Resolveu tomar uma medida extrema, corrigir o garoto e aplacar a ira da comunidade. Tomou o estilingue de Joãzinho. O padre fez-se de insensível, reteve a arma consigo e para o menino não pegar colocou-o no bolso, por baixo da batina. Bem seguro.
O menino seguia bem, acabaram-se as peraltices e o padre estava feliz, resignado, mas mantinha o estilingue ali, no bolso debaixo da batina, consigo. Numas das missas dominicais o bispo, que chegara ao meio da cerimônia, participava do primeiro banco, cheio de fé e dizendo as orações conjuntamente com o padre, de cor. Fraco de oratória, sem manifestar seu pensamento cotidiano e sem alvejar os corações do povo, tinha medo até de falar. O menino, ao lado, suspirava desatento. Era a hora de servir o vinho. Então fez os costumeiros gestos com as mãos sob a mesa, mas o acólito não o servia. Manteve os olhos enlevados e fingiu uma dispersão angelical até que abaixou, beijou o altar e sussurrou: “...o vinho, João...João, o vinho”. E Joãzinho disse: “dá o meu estilingue, seu padre!”. “O vinho, pelo amor de Deus!”. “Dá meu estilingue agora!”. “Depois. Aqui não!”, retrucou o padre, todo paramentado. “Então não tem vinho, seu padre”. Assustado, na hora mais solene da missa, pediu que todos meditassem sobre aquele mistério e fechassem os olhos. Quando todos assim fizeram, virou-se num aperto pra cá e pra lá e levantando toda a indumentária litúrgica, puxou o dito estilingue e passou ao coroinha.


Texto e enredos criados da contribuição verbal de Alessio Quartarollo, meu pai.

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