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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sexta-feira, 27 de março de 2009

Uma homenagem ao meu avô materno. Carlos.
Jardinagem

O velho Carlos ali plantava, enxertava, ajeitava os canteiros, e convivia com todos os seres em miniatura do jardim. Estava encurvado pela idade o homem rude e cheirando a suor, a perfume de plantas e à terra. Conhecia os beija-flores quase que pelo nome e pelo vôo e os via por segundos, batendo suas asas invisíveis, inesquecíveis. Os pássaros em confiança voavam rasantes ao velho de cenho branco que se entretinha em meio a tanto verde e cantos de algazarra daquele passaredo. Afoitos surgiam no ar com danças mirabolantes, outros paravam nos galhos das árvores, cantavam nas moitas e até ciscavam no jardim. Seus pensamentos eram limpos, sua cruz era leve e a natureza amiga. Ao chegar a casa à noite, entrava pelo quintal, tirava os sapatos de terra e antes de entrar na civilização, sentava-se, parava a pensar e agradecer ante o sol que se punha. Lá na cozinha, Irene chamava-o, que subisse a escada e saísse de sua soleira amiga, o jantar estava pronto, que viesse comer. Alguns netos entretinham o olhar na cena, vinha com uma rosa e sem jeito oferecia a Irene, tímido. Velho bobo não precisava se preocupar, dizia, mas todos os dias seu vaso de louça estava repleto dos mais variados matizes e perfumes. O sono de Carlos era um canto uníssono com Deus e com a liberdade.
Portava também um velho livro de folhas amareladas pelo tempo, de orações ao Senhor dos Jardins. Orava em pensamento, enquanto trabalhava, pelos jardins e jardineiros do mundo, por todos os jardins e casas, caminhava sobre as dez pedras brancas que ele mesmo colocara e que faziam o responso aos seus pés, em meio à grama. E que todos pudessem ter seu jardim! Amém. Sabia que não iria além do jardim, queria ser uma daquelas árvores, feias e rudes, a gozar da companhia das flores, cascas, poeira, sementes, que a natureza produz em sua vital dinâmica, arrasadora, inexorável e bela. Ao passar pelo jardim é possível ouvir-lhe os passos pelo farfalhar da grama num ruído verde que rompe o tempo, num zap-zap bem manso. Em meio ao jardim há água aos borbotões, o sábio jardineiro plantou uma vegetação de raízes profundas e ávidas de água, enriquecendo o seu solo, túmidas. As rosas perfumadas e lindas, noutro dia são folhas que ele varre amiúde junto aos pés das árvores. Sabia que seu jardim era efêmero como ele e sua glória. Aprendeu a ser humilde e feliz esperando o seu súbito final, a morte.
Foi capinado da terra e caiu como uma árvore, ainda com os ramos estendidos. Seu jardim acolheu o seu corpo, agonizante. Passou de um jardim a outro, o Senhor dos jardins acolheu o seu servo. Fizeram-se presentes todas as rosas, borboletas e uma grande revoada de pássaros de todas as espécies e cores, em seu funeral. No caixão de cedro, como que dormia, espraiava um sorriso em sua face, ainda rosada. Não quis honra, nenhuma pompa, apenas a mortalha, não quis nada, nada levou, foi inteiro para o céu, para o jardim que a muito estava preparado, antes da fundação do Universo. Morreu para este mundo, sem maculá-lo.
E lá, no jardim inominável debaixo do céu, das raízes enlameadas e túrgidas, ainda transparece a vida dadivosa das plantas. Nos fundos de uma casa velha e ruinosa, a qual descascam-se as paredes e os cômodos. Sim, é a umidade do jardim dizem os engenheiros. É preciso derrubar o jardim, cortar a cabeça do Capitão e Dálias ao fogo, caçar os Antúrios, assombrar os Girassóis, corrigir essa tal Maria-sem-vergonha, nem que sejam as Onze-Horas, que se arranquem as Avencas e acabem com essa encrenca, tire-se o Chapéu-de-Couro, regurgite-se o Boldo e que se feche a Boca-de-Leão, nem que seja Flor de São José, nem que a Dona Margarida abra essa ferida, nem que se jogue a Hortênsia, nem que o Cravo apazigúe com a Rosa, nem que renasça os Gerânios, que se derrube o arvoredo e se espante o passaredo, chega de Palmas.
Assim, indefeso, o jardim foi pisado, arrancado e calcado com cimento. Impiedosamente as flores foram jogadas dentro de um saco para o caminhão barulhento do lixo. Puseram um piso belo, importado com desenhos de plantas, muito bonito e limpo, sem necessidade de nenhum jardineiro.
O povo que vive do lixão retirou as plantas do meio dos cacos de vidros, latas, pilhas usadas, restos de comidas e outros detritos “desumanos” – de coleta não seletiva - e plantaram numa área invadida por pássaros, beija-flores, borboletas, gafanhotos, grilos e todos os rejeitados pelo centro urbano. Um novo jardim? Então encontraram também o livro de folhas amareladas, onde se lê nas letras rudes e piedosas de um recém analfabeto: Eis que o Senhor fará novas todas as coisas. Carlos.

9 comentários:

  1. ae camilo, desculpa ae por nao estar lendo seus posts
    to meio sem paciencia pra ler no PC.
    qlq dia eu leio com atenção ae eu posto algo aki
    flw
    :D

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  2. CAMILO,
    Que homem lindo foi seu avô Carlos, gostava da terra, cultivava as plantas formando seu jardim e ainda oferecia uma flor para a esposa?Lindo de viver. Que estranho a umidade vir do jardim, que raio de engenheiro é esse que destruiu todo o jardim e jogou um cimento no local? Mas no final as plantas foram salvas por pessoas simples, mas conscientes!

    Ivana.

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  3. Vinicius, um abraço.Um dia as publico e você as deixa na sua cabeceira, em seu suntuoso quarto, por que daí você, já vai ser um homem de sucesso.
    Ivana, um abraço, tinha que escrever sobre ele e mais, tinha de fazê-lo em forma poética, dos muitos Carlos que existem.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Postagem acima por e-mail: Caro Camilo, essa é uma das suas crônicas que mais me tocou. Falou de plantas e de flores. Fez eu lembrar o tio Carlos, tio Carlito como chamavamos - (aquele dos causos)- que gostava muito de cultivar suas flores e plantas nos pequenos espaços que tinha na sua casa.
    Me fez lembrar com tristeza, também, o quital belo e formoso da casa que nasci lá no sitio, cheio de mangueira e jatoticabeiras e tantas outras frutas e árvores frondosas que suas raizes serviam de banco para nós trocarmos prosas e reuniamos para a nossa amadora cantoria. Tristeza porque, após a venda do sitio - um médico seu comprador -fez cortar toda aquela maravavilha centenária, com a ESTUPEDA desculpa que esfriava a casa. Coitado do "Dr.".
    Abraço Camilo, linda crônica.

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  6. Caro Camilo, essa é uma das suas crônicas que mais me tocou. Falou de
    plantas e de flores. Fez eu lembrar o tio Carlos, tio Carlito como
    chamavamos - (aquele dos causos)- que gostava muito de cultivar suas
    flores
    e plantas nos pequenos espaços que tinha na sua casa.
    Me fez lembrar com tristeza, também, o quital belo e formoso da casa que
    nasci lá no sitio, cheio de mangueira e jatoticabeiras e tantas outras
    frutas e árvores frondosas que suas raizes serviam de banco para nós
    trocarmos prosas e reuniamos para a nossa amadora cantoria. Tristeza
    porque,
    após a venda do sitio - um médico seu comprador -fez cortar toda aquela
    maravavilha centenária, com a ESTUPEDA desculpa que esfriava a casa.
    Coitado
    do "Dr.".
    Abraço Camilo, linda crônica.

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  7. Camilo, seus textos estão cada vez mais no domínio da poesia... adorei cada metáfora tão bem empregada e confesso: em mais de um trecho submergiu fortemente uma profunda emoção do meu ser imortal a respeito de um avó jardineiro que certamente numa das minhas existências tive. Um texto impecável escrito por um homem adorável. Beijão.

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  8. O texto não é recente, tem coisa de um ano e meio. Eu vou assim, do lírico ao épico, mas o interior lírico prevalece ou quebra no épico ou dúvidas existenciais. Um abraço e até.

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  9. Primo, Lí e senti saudade do nono e da nona, lembro da nona sempre no fogão ou pondo a mesa, o cabelo branquinho sempre preso, a roupa simples, impecável. Acho que é uma das minhas mais antigas lembranças. Voltei ao passado...Beijos...Rô

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