Conteúdo

O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Observação: Cuidado, faça silêncio...se quiser comente ao final, abaixo.
O paciente.
Grato.

O coma

Lembrava-se de alguns piados de aves junto à janela, de luzes de um monitor ligado a si, de uns tubos que o atrapalhavam. Alguns rostos que se achegavam perto do seu e num instante sumiam. Via o teto novamente, não podia mover-se. Alguém o virava e jogava água no corpo quase inerte, ás vezes, sentia até carinho e algum balbucio espremido, choroso; mas o choro solitário ia-se pelo corredor até sumir em alguns passos de uma enfermeira na contramão. A inconsciência vinha outra vez, num apagamento de bêbado, por muitas primaveras floridas. Nos breves momentos de quase consciência compreendia que o mundo continuava a existir sem ele ou apesar dele e os momentos breves eram eternos no limiar da consciência tão mais consciente. Deliciava-se até com aquele aroma da sopa de hospital, que não comia.
Sem pulso e sem relógio, os seus momentos eram contados pelos pequenos ponteiros de um demiurgo anônimo, que lhe ministrava um ritmo interior, quase imperceptível aos mortais. Talvez ele mesmo. Dos seus olhos eram as cores das primaveras de sempre, dentro de si. Da janela, se estivesse desperto, veria o jardim molhado, após a chuva noturna e o céu bem azul e límpido, enquanto os aparelhos com seus impulsos elétricos demarcam a vigília dos humanos. Um sol enorme, medonho de belo, levantava-se no horizonte, soprando as brisas com seu calor. Era o dia.
Por fim se recuperou o paciente do quarto 1984. Vestido e barbeado, sentou-se para o acerto de contas e para agradecer pelo longo atendimento de primeira classe. Era rico. Ia sacar o talão de cheques. Cheques? A memória o traía. Depois de vinte anos não existiam mais cheques, dinheiro, títulos em papéis. Era tudo por impressão digital. Colocava o indicador num orifício de leitura e pronto, iam-se os créditos de um homem. Queria agradecer as enfermeiras então. Enfermeiras?! Não havia mais. Aquelas que pensara ver, em transe de consciência, eram imagens holográficas, para adaptar o paciente ao hospital. Isso o acalmaria, faz parte da recuperação psicológica, informou o gerente.
Olhou em volta, através da janela, e perguntou do jardim, do seu jardim. Jardim? Era imagem holográfica também, disse o gerente, o metro quadrado ali era caríssimo e esse custo foi revertido em equipamentos e leitos. O paciente concluíra que era tudo automatizado mesmo. “...e salvou a sua vida.”, arrematou o gerente. Vida! A esposa onde estava? Ouvira a voz chorosa dela! “Ah, era uma simulação de voz do computador. Fazia parte da evolução psicológica na U.T.I., na escala de coma 5. Ela está casada com o outro. Não ia te esperar, não é mesmo!”, disse ainda o gerente pragmático.
Afundou no sofá e clamou: meu Deus! “A capela fica do outro lado, é holográfica e com aquecimento, quase se pode tocar as imagens nos pedestais”, disse o gerente, frio; ao que o ex-paciente retrucou, “eu quero morrer”. O representante da empresa replicou que morte é mais cara, o cemitério holográfico demanda energia além do suportável a empresa.
Uma luz piscou no monitor do gerente, que solicitou o indicador do paciente no leitor óptico. Sim, ainda havia crédito! Um dispositivo conectado a poltrona-cama injetou-lhe uma droga e voltou ao coma profundo, no quarto virtual onde estivera sempre, com o diagnóstico justificativo: Readaptação ao sistema. Dias mais tarde, veio a falecer de morte natural. Só se vê fora, de alguma forma, o que já está dentro. Venceu o sistema.
Publicado na Tribuna Piracicabana em 30/03/09