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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 27 de novembro de 2010

Homenagens póstumas ao meu professor e amigo Euclides Buzetto, foi ele um dos que, em suas aulas de geografia, 1977, lembro-me, levava os alunos à reflexão apesar da desinformação sistemática promovida pelo regime militar, falando sobre os problemas reais da opressão e do silêncio imposto. Amigo, creio que, se foi para o céu ou para o inferno, vai se virar muito bem, alienado não é, e, se no céu, não existe campanha de desinformação, só existe o Ser, o verdadeiro, nada mais.

Condolências ao estimado e admirado amigo Gleison pelo passamento de seu pai de oitenta anos e de muitas lições que vai nos contando o filho. Falar da amizade do Gleison é covardia, porque com tantas qualidades humanas e profissionais tem muitíssimos amigos e eu mais um.

O poderoso cachorrão - texto do blog, publicado no A Tribuna Piracicabana de 27/11/10. Divirtam-se.

Outro cachorro! Sim, o de estimação morrera há alguns dias. Muito pranteado pela mulher, mas na feirinha comprou outro e, grande, bem maior o que Pequinês que tinha. Com certeza aquele cachorrão ia levantar os móveis todos ao entrar embaixo. Que belezinha - dizia ela - e já veio com um lacinho vermelho e uma medalhinha em latim no pescoço! O marido já mandou os seus chistes: Só falta falar latim, latir já late muito bem. Mas a jeitosa esposa punha o marido no seu lugar e o cão no outro, ambos no sofá. Sim, o cachorro sentava-se como gente. Era um enorme cão de pelo branco, que mais parecia um urso mole, folgadão. Apelidado de Pimpão. Não fazia nada, mas usufruía de tudo. O marido se ressentia. Era só ouvir talheres descia pela escada em fartos pelos brancos balouçante com a língua vermelha de fora. Oh!Pimpão, exclamava a amável dona. Pimpão vinha e sorvia um prato cheio de um refinado cardápio humano, sem ter de cortar os pedacinhos com talheres – era só esperar com as patas dianteiras sobre a toalha e nhac-nhac para as goelas. No final, ela lhe perguntava se queria um suquinho e, pronto, era só arfar e num abrir de boca lá estava o cochinho com o suco gaseificado. O marido esquecido ficava no canto da mesa como o chefe do lar, mas os cuidados lhe eram poucos acessíveis e comia as sobras, primeiro o Pimpão.
Os carinhos eram todos para o cão. Criara ojeriza pelo animal que quando ficava nas duas patas, quase igualava ao seu tamanho de grande que era, e lambia tudo, até ele se deixasse. Quando a esposa saía, ficava com o Pimpão sentado ao lado. Quase não podia ver TV, as lambidas e mordiscadas dele nas próprias patas incomodava o homem com o controle remoto. Dizem que cachorro não consegue enxergar a tela, porém este não abria mão do sofá e manducava porcariadas junto com o dono. Era uma forma de manter calmo o peludão, enquanto a mulher não chegava. Quando esta chegava, que festa! Olha o que eu trouxe para você! Vinha com presentes para o cão, para o marido não. Este reclamava e ela o consolava: bem, não ia trazer osso para você, ia?
Que raiva! Sentia o homem, tanta, que um dia quase roeu um daqueles ossos duros na solidão, mas pensou e devolveu no cocho. Aquelas crises de ciúme iam e voltavam e o cachorro não tinha isso, era tranquilo, balançando a pelagem branca pela casa com a medalhinha no pescoço. A medalhinha!? Será que não seria alguma indicação do nome do antigo dono? Se fosse, iria devolvê-lo. A mulher que comprasse outro pequinês para se distrair. Então tentou a amizade com o inimigo. Ao sair a esposa, começou a se entreter com o cachorro para ler a medalhinha do pescoço dele. A aproximação foi lenta e gradual, enquanto se descuidava propositalmente da tela da TV. O cachorro assentiu ao carinho, olhando para ele como gente e relaxando a língua, arfava pelo inesperado e ele foi até que chegou à medalhinha e, lendo “in canis corpore transmuto” transformou-se em cachorro e o Pimpão, em homem. Momentos após chegou a mulher, beijou o falso marido e puxou a pelagem do falso Pimpão, que teve de descer ao chão e ver o rival com o controle remoto na mão.

sábado, 20 de novembro de 2010








O jardim francês - publicado na @ Tribuna Piracicabana em 20/11/10


Conheceram-se num jardim, na adolescência. Eram bancos entremeados de chafarizes, estatuas e os deuses do amor, sem cerca ou portão, que impedisse a visão ou acesso. Era público e aconchegante, de muito espaço o jardim do primeiro beijo.
Não se casaram, como dois pássaros fizeram o ninho num lugar escuso, na garagem dos pais dela, ao lado do jardim francês, numa cama de solteiro, onde mal cabiam seus corpos e nos corpos em que mal cabiam de felizes.
Na primeira noite perceberam um furo no teto, mas longe da cama, por onde o luar da cheia espraiava-se sobre o piso trincado na marca da mancha limpa, e no ar o halo bonito de uma noite de leve candura. Lá fora, do outro lado da meia-noite, assobios dos passantes defronte a velha garagem com algumas peças desmontadas de carro pelo chão e na parede uma bicicleta inclinada num gancho. A viatura da policia passou com a sirene ligada, sumindo na noite; um velhinho costumava tocar a bengala pelas reentrâncias da porta metálica, como um teclado irritadiço – mal sabia que havia gente lá. A menina virava-se por sobre o companheiro e dava graças a Deus quando ouvia o velhinho ao longe, numa tosse e tóc-tóc na esquina. De repente descia uma bicicleta de breque puxado, uma moto acelera e derrapa, um homem desce assobiando e de mochila nas costas, pensa – é o guarda da fábrica ao lado.
No segundo dia choveu. A lua não deu as caras. As penumbras de caixas e coisas empilhadas ao lado, fazia os jovens assemelhados ao descaso. A goteira do teto era constante, escorrendo pelo corredor contínuo até o portãozinho baixo, atrás de uma espinheira. Sabia que além tinha o jardim, por onde podia o ver úmido e breve sob as luzes redondas de postes antigos.
Nos dias seguintes, a insônia fazia a menina perambular pelo jardim, fora da garagem do pai. As flores estavam esplêndidas com a chuva da noite e o sol matutino derrubava ainda algumas gotinhas das folhas, num som inaudível. Mais tarde o jovem levantava e abraçava o travesseiro ainda quente, dos sonhos que a menina tinha levado para o jardim e para lá ia, acordar-se de vez. Era dia. Na noite seguinte o pai levantou a porta da garagem e os encontrou dormindo lá, nus. Cassou a permissão deles e que se virassem por outro local, lá não. Antes nada era proibido. Se não fosse o jardim não se conheceriam e a garagem seria mais um depósito de coisas.

sábado, 13 de novembro de 2010

Divulgação: Parabéns ao espetáculo teatral ganhador de vários prêmios Tudo o que não invento é falso, inspirado na obra do poeta Manoel de Barros, dirigido pelo Abegão. acima o cenário com as cores dos livros de Manoel.

Parabéns também aos atores mirins Jone e Bruno da Escola Jorge Coury e aos professores pela apresentação da peça de autoria de Jone, As histórias que foram e não voltaram.


Aproveito para agradecer à ong www.viralaviravida.org.br por doar-nos Belinha (Chiara, registro Ong), encontrada numa toca de coruja com três filhotes, em condições difíceis, cuja foto posto ao lado.

Dois olhos

Um barulho no quintal. Todos acordaram na noite. Cuidado, pé ante pé no silêncio que se instalou a seguir. Nada. O quintal estava calmo. As janelas contidas pela cortina de seda, a cidade sonha nas penumbras domésticas, nos corredores de fora, a lavadora de roupas, os varais no balanço da brisa madrugadora, ruídos furtivos de um pássaro noturno e dois olhos. Dois olhos! Sim, viam-se sob a cadeira encostada à parede, donde lá saiu um cachorro de cor caramelo. Eram dois olhos e quatro patas brincalhonas. Tinha fome, mas contentou-se em lamber a primeira mão estendida e com a sobra esfriada sobre o fogão do jantar.
Enrolado numa camiseta velha do dono da casa adormeceu. No dia seguinte o visitante esticou as pernas, cheirou toda a cercania da casa, cuidadosamente e aguardou na porta da cozinha. As pessoas iam se levantar. Sabia. Foi estabelecendo preferências. Gostava de mexerica e não comia abacate. Se tivesse problemas intestinais fazia jejum e comia mato, o seu olfato lhe permitia conhecimentos além da do dono biólogo. Os ossinhos, iguarias que a dona lhe dava escondidos aos pedaços pela casa e quintal, o cão ia a eles pelo olfato estabelecendo um mapa em seu cérebro canino. Mas de memória? As tinha? Por certo. Quando os pedaços eram menos que os quatro costumeiros, fazia o caminho pelos esconderijos habituais, como os da sequência anterior, buscando o alimento e o carinho atrás de obstáculos, em sua jocosa manobra e piques pelo quintal.
Por vezes, Dois olhos – esse era o segundo nome ou apelido que perdurou ao animal - devolvia às pessoas da casa um ou outro alimento ou brinquedo, seguros na boca, numa relação de amizade, ou ainda, o animal escondia objetos em algum lugar escuso, ao acaso, de presente a quem fizesse a faxina. Ao ser afagado nos pelos do pescoço relaxava do stress do quintal, das formigas que comiam sua ração e dos pássaros que invadiam seu território. Olhar enigmático, o sentimento canino era imperscrutável, mas benignamente, afetivo e manso, contido nos olhos expressivos. Mordiscava, não feria as mãos humanas que o incomodavam; se uma tapa acidental ou não, sempre oferecia outro focinho, outros olhares inenarráveis aqui (pergunte a mulher). A mulher, sensível, dizia ao marido: “Os olhos mudam, veja esse olhar, parece gente!”. Dois olhos fita também o dono que tirava os olhos da TV, era como se tivesse ouvido a conversa toda, silente e em pé nos joelhos da dona, falava com os olhos.
Dentre os parentes, era tido por alguns como um cachorro vadio, de manhas e mais uma boca para alimentar. Afinal seria uma ótima companhia para maltrapilhos e bêbados, chegavam a dizer. Era mesmo, não fazia acepção de pessoas, reconhecia a raça humana além das ambições e vaidades. Tinha faro, feeling para conhecer amigos. Mas a sua predileção era a família que adotara (o cão os adotara).
Publicado na A Tribuna Piracicabana em 13/11/10 - grato

sábado, 6 de novembro de 2010

Divulgação:
Nhô Lica já é peça de Teatro com o diretor, escritor, e roteirista (e discurpe se fartô algum atributo) Carlos ABC que fez essa peça com o habitual jeito piracicabano e quem não conheceu Nhô Lica, conheçam.
texto do blog:
Espero que gostem do texto de minha infância, talvez a família goste.
Estamos com os últimos exemplares de O Efeito Espacial, grato a todos os leitores e incentivadores da leitura e do gênero. Tento fazer o meu melhor e caprichar, cortar na carne palavras e frases para dar entendimento e não torturar o leitor.
Grato.
O blogueiro.

Fuga do sultão


Minha infância. O sultão era cavalo único. Lembro-me dele na cachoeira, depois de desencilhado da carroça. Comia olhando ao longe, aliviado do cansaço da jornada da feira, enquanto meu pai fazia a sesta. Era como seus olhos contassem do pai, com quem eu não podia estar o tempo todo. Sultão agora estava lá solto, comendo, livre de peias e eu sabia que papai dava um cochilo dentro de casa.
Ficava olhando o babão e, se o olhasse direto nos olhões, parava. Tinha os olhos escuros e orelhas expressivas quando eu chegara próximo à cocheira. Esticava o braço àquele ser pré-histórico e manso e ele interrompia a mastigação, depois dava uns coices para assustar as moscas. Ao fundo a carroça empinada num canto, nosso “carro”, com estribo de metal e com varais de ponteiros cromados que reluziam ao sol. Quando meu pai levantava-se, passava pela cocheira fazia umas “massagens” na cara do animal e batia forte nas ancas com alguns gritos e o cavalo arrancava para o pasto num relincho de liberdade, dava umas voltas de corrida, de galope, como numa demonstração ao dono. Acho que meu pai fazia isso para eu ver.
Uma manhã meu pai não pôde ir à feira como fazia. De madrugada já viu o portão quebrado e o sultão fora-se. Os vizinhos comentavam e tentavam ajudar olhando pelas redondezas. Perambulava eu pelo pasto vazio e pela cocheira limpa, sentia a falta de sultão. Por onde andaria? Foram dias de preocupação e sem a féria da feira, a família ia passar necessidade. Às vezes, tinha a impressão de ver o animal pastando de cabeça baixa, cortando o capinzal como cortadeira de grama, até ouvia as batidas de patas – não relinchava quando comia. Claro que não estava lá, via meu pai preocupado, pensando em outra solução para a carroça. Eu, criança, sem poder opinar, não via outra opção à carroça a não ser o sultão. Aquele andar cadenciado, de pelos negros, o meu cavalo. Meu? Não, meu pai o dividiu comigo e assim o dissera para satisfazer minha fantasia. O nosso cavalo fugira.
Esses cavalos soltos se ajuntam a tropas em beiras de estradas, em campos, então as patrulhas municipais os pegam e os donos tem de pagar para os reaver. Meu pai já tinha desenganado da busca, mas eu não. Como ia deixar levarem o meu cavalo?! Imaginoso, via aquele cavalo em pensamento. Tinha uma ligação com ele e ao meu pai. À toda informação da vizinhança de algum cavalo parecido os vizinhos vinham à nossa casa. Uma carroça ia levando dois cavalos achados pela rua debaixo. Meu pai fazia a sesta, então sai com minhas calças curtas e descalço, alcancei a carroça aos gritos. Eles pararam, os cocheiros tinham relhos nos ombros e puxavam os animais por cordas, e dei uma ordem:
- Soltem o meu cavalo.
Um senhor olhou de cima e para trás, sem nada dizer, só olhava.
- É esse, é do meu pai, viu. Solte ele, meu pai é ferante. Mora ali, ó, tem de ir na feira amanhã, solta o meu cavalo.
- Seu pai vai pegar ele lá curral da prefeitura, menino.
Olhei o sultão, que não queria ir. Insisti sem argumentos, o homem jogou as rédeas dele para mim. Talvez pensasse que eu os fosse seguir até a prefeitura.
Depois de alguns anos meu pai comprou uma Kombi e o cavalo foi vendido para alguém que era amigo seu. Foi como me contou também, que estava gordo e por final:
- Lembra do Sultão? Morreu.
Assim meu velho pai ia ajudando-me em alguns passos e impulsionando-me em outros, os quais foram revelando-me a vida.