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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 6 de novembro de 2010

Divulgação:
Nhô Lica já é peça de Teatro com o diretor, escritor, e roteirista (e discurpe se fartô algum atributo) Carlos ABC que fez essa peça com o habitual jeito piracicabano e quem não conheceu Nhô Lica, conheçam.
texto do blog:
Espero que gostem do texto de minha infância, talvez a família goste.
Estamos com os últimos exemplares de O Efeito Espacial, grato a todos os leitores e incentivadores da leitura e do gênero. Tento fazer o meu melhor e caprichar, cortar na carne palavras e frases para dar entendimento e não torturar o leitor.
Grato.
O blogueiro.

Fuga do sultão


Minha infância. O sultão era cavalo único. Lembro-me dele na cachoeira, depois de desencilhado da carroça. Comia olhando ao longe, aliviado do cansaço da jornada da feira, enquanto meu pai fazia a sesta. Era como seus olhos contassem do pai, com quem eu não podia estar o tempo todo. Sultão agora estava lá solto, comendo, livre de peias e eu sabia que papai dava um cochilo dentro de casa.
Ficava olhando o babão e, se o olhasse direto nos olhões, parava. Tinha os olhos escuros e orelhas expressivas quando eu chegara próximo à cocheira. Esticava o braço àquele ser pré-histórico e manso e ele interrompia a mastigação, depois dava uns coices para assustar as moscas. Ao fundo a carroça empinada num canto, nosso “carro”, com estribo de metal e com varais de ponteiros cromados que reluziam ao sol. Quando meu pai levantava-se, passava pela cocheira fazia umas “massagens” na cara do animal e batia forte nas ancas com alguns gritos e o cavalo arrancava para o pasto num relincho de liberdade, dava umas voltas de corrida, de galope, como numa demonstração ao dono. Acho que meu pai fazia isso para eu ver.
Uma manhã meu pai não pôde ir à feira como fazia. De madrugada já viu o portão quebrado e o sultão fora-se. Os vizinhos comentavam e tentavam ajudar olhando pelas redondezas. Perambulava eu pelo pasto vazio e pela cocheira limpa, sentia a falta de sultão. Por onde andaria? Foram dias de preocupação e sem a féria da feira, a família ia passar necessidade. Às vezes, tinha a impressão de ver o animal pastando de cabeça baixa, cortando o capinzal como cortadeira de grama, até ouvia as batidas de patas – não relinchava quando comia. Claro que não estava lá, via meu pai preocupado, pensando em outra solução para a carroça. Eu, criança, sem poder opinar, não via outra opção à carroça a não ser o sultão. Aquele andar cadenciado, de pelos negros, o meu cavalo. Meu? Não, meu pai o dividiu comigo e assim o dissera para satisfazer minha fantasia. O nosso cavalo fugira.
Esses cavalos soltos se ajuntam a tropas em beiras de estradas, em campos, então as patrulhas municipais os pegam e os donos tem de pagar para os reaver. Meu pai já tinha desenganado da busca, mas eu não. Como ia deixar levarem o meu cavalo?! Imaginoso, via aquele cavalo em pensamento. Tinha uma ligação com ele e ao meu pai. À toda informação da vizinhança de algum cavalo parecido os vizinhos vinham à nossa casa. Uma carroça ia levando dois cavalos achados pela rua debaixo. Meu pai fazia a sesta, então sai com minhas calças curtas e descalço, alcancei a carroça aos gritos. Eles pararam, os cocheiros tinham relhos nos ombros e puxavam os animais por cordas, e dei uma ordem:
- Soltem o meu cavalo.
Um senhor olhou de cima e para trás, sem nada dizer, só olhava.
- É esse, é do meu pai, viu. Solte ele, meu pai é ferante. Mora ali, ó, tem de ir na feira amanhã, solta o meu cavalo.
- Seu pai vai pegar ele lá curral da prefeitura, menino.
Olhei o sultão, que não queria ir. Insisti sem argumentos, o homem jogou as rédeas dele para mim. Talvez pensasse que eu os fosse seguir até a prefeitura.
Depois de alguns anos meu pai comprou uma Kombi e o cavalo foi vendido para alguém que era amigo seu. Foi como me contou também, que estava gordo e por final:
- Lembra do Sultão? Morreu.
Assim meu velho pai ia ajudando-me em alguns passos e impulsionando-me em outros, os quais foram revelando-me a vida.

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