Conteúdo

O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 13 de novembro de 2010

Divulgação: Parabéns ao espetáculo teatral ganhador de vários prêmios Tudo o que não invento é falso, inspirado na obra do poeta Manoel de Barros, dirigido pelo Abegão. acima o cenário com as cores dos livros de Manoel.

Parabéns também aos atores mirins Jone e Bruno da Escola Jorge Coury e aos professores pela apresentação da peça de autoria de Jone, As histórias que foram e não voltaram.


Aproveito para agradecer à ong www.viralaviravida.org.br por doar-nos Belinha (Chiara, registro Ong), encontrada numa toca de coruja com três filhotes, em condições difíceis, cuja foto posto ao lado.

Dois olhos

Um barulho no quintal. Todos acordaram na noite. Cuidado, pé ante pé no silêncio que se instalou a seguir. Nada. O quintal estava calmo. As janelas contidas pela cortina de seda, a cidade sonha nas penumbras domésticas, nos corredores de fora, a lavadora de roupas, os varais no balanço da brisa madrugadora, ruídos furtivos de um pássaro noturno e dois olhos. Dois olhos! Sim, viam-se sob a cadeira encostada à parede, donde lá saiu um cachorro de cor caramelo. Eram dois olhos e quatro patas brincalhonas. Tinha fome, mas contentou-se em lamber a primeira mão estendida e com a sobra esfriada sobre o fogão do jantar.
Enrolado numa camiseta velha do dono da casa adormeceu. No dia seguinte o visitante esticou as pernas, cheirou toda a cercania da casa, cuidadosamente e aguardou na porta da cozinha. As pessoas iam se levantar. Sabia. Foi estabelecendo preferências. Gostava de mexerica e não comia abacate. Se tivesse problemas intestinais fazia jejum e comia mato, o seu olfato lhe permitia conhecimentos além da do dono biólogo. Os ossinhos, iguarias que a dona lhe dava escondidos aos pedaços pela casa e quintal, o cão ia a eles pelo olfato estabelecendo um mapa em seu cérebro canino. Mas de memória? As tinha? Por certo. Quando os pedaços eram menos que os quatro costumeiros, fazia o caminho pelos esconderijos habituais, como os da sequência anterior, buscando o alimento e o carinho atrás de obstáculos, em sua jocosa manobra e piques pelo quintal.
Por vezes, Dois olhos – esse era o segundo nome ou apelido que perdurou ao animal - devolvia às pessoas da casa um ou outro alimento ou brinquedo, seguros na boca, numa relação de amizade, ou ainda, o animal escondia objetos em algum lugar escuso, ao acaso, de presente a quem fizesse a faxina. Ao ser afagado nos pelos do pescoço relaxava do stress do quintal, das formigas que comiam sua ração e dos pássaros que invadiam seu território. Olhar enigmático, o sentimento canino era imperscrutável, mas benignamente, afetivo e manso, contido nos olhos expressivos. Mordiscava, não feria as mãos humanas que o incomodavam; se uma tapa acidental ou não, sempre oferecia outro focinho, outros olhares inenarráveis aqui (pergunte a mulher). A mulher, sensível, dizia ao marido: “Os olhos mudam, veja esse olhar, parece gente!”. Dois olhos fita também o dono que tirava os olhos da TV, era como se tivesse ouvido a conversa toda, silente e em pé nos joelhos da dona, falava com os olhos.
Dentre os parentes, era tido por alguns como um cachorro vadio, de manhas e mais uma boca para alimentar. Afinal seria uma ótima companhia para maltrapilhos e bêbados, chegavam a dizer. Era mesmo, não fazia acepção de pessoas, reconhecia a raça humana além das ambições e vaidades. Tinha faro, feeling para conhecer amigos. Mas a sua predileção era a família que adotara (o cão os adotara).
Publicado na A Tribuna Piracicabana em 13/11/10 - grato

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é valioso. Grato.