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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010


Meus amigos, feliz natal a todos. Hoje posto um texto sobre um natal diferente, o de uma idosa. Nesta semana perdi uma tia de 83 anos, muito franca e simples com suas flores de quintal, tia Elydia Todeschini Pozzato. Velamos o seu corpo com a última expressão serena em vida. Adeus e feliz natal. Queria postar o texto abaixo nesta semana e acho que pressentia o seu passamento, o natal se faz a cada dia, são presentes que nós preparamos uns para os outros, o céu é assim.
O blogueiro

Meu filho!

Alô, hum, o quê? O rapaz desligou. Erro de dedinho, o último dígito. Dera para cometer erros, lapsos do estresse. Deixou-se cair no sofá como o corpo engordado por uma bruxa para o próximo enfarto, preso do tédio. Tinha de caminhar, deixar aqueles torresminhos do mercado e pegar duro no trabalho, andava com depressão – o médico lhe dissera sem cobrar nada, era amigo do trabalho. Mentalmente já cansava pelo percurso não feito e de pôr o tênis, o short e a camiseta com um boné e óculos pretos – uma toalha nos ombros para enxugar o suor não faria mal. Ali pensando enxugava-se com o lenço mesmo.
Sim, aquele corpo era a causa de muitos males. A última namorada já o deixara por um corpo mais jovem e belo. A gordura já lhe atingia o peitoral, fazendo um rosto disforme ligando-se às papas. O cabelo, um bem de juventude, já caía no banho de dever matinal. O café lhe alegrava, lembrava a mãe – dizia o terapeuta. A mãe? Quê mãe? Já morrera na infância. A tia velha lhe criou aos supetões, sob lições de reguadas na cabeça. Sabia a medida do seu cérebro por isso. Falta de autoestima bloqueia a mente.
Quando se esquecia no quintal de terra a velha vinha e o empurrava para dentro do banheiro, como um boi ao matadouro. Ficava ali tremendo nu, vendo as louças brancas e frias e do alto viriam os chuviscos aos quais tinha de se submeter. Já grandinho e a água não o lavava por si, descobrira quando a tia começou a invadir e lhe ensaboar entre as orelhas e partes íntimas, deixando esfregões no pescoço. Saía limpo com todo o ser esfregado e murcho. Os pijamas para o sono. Dormir? Era uma obrigação. Resolveu que não, não dormiria. Ficava por muitas horas, contadas no criado-mudo, acordado com um livro na cabeceira sem o ler e sem o sonhar, depois revolvia a toalha para o chão e saía até uma cadeira velha, no quintal. A tia não o atingiria ali e não cumpriria o dever do sono diário. A velha percebeu o ardil ingênuo do menino e impingiu tantas neuroses a sua cabeça que o fazia cair no sono durante o dia, sem dormir. Negava para si mesmo a queda nos braços de Morfeu.
Era um sofá macio o da sala de espera, sem molas e engolia gente de todo o tamanho. O que fazer? A não ser segurar naquele aparelho de teclas mágicas. Ligou de novo. O lapso ocorreu exatamente como da outra vez e a ligação caiu no mesmo número errado.
- Pois, não. Não sou eu, não. Foi engano! – repetiu até que parou de falar, e do outro celular uma senhora falava com o filho imaginário.
- Meu filho! Você não vem mais aqui, nem no natal. Eu fiquei doente, sabia? Estou com saudade. Lembra-se de quando eu lhe cuidava, meu fofinho! Não precisa trazer maçãs, só quero a sua presença.
– Não minha, senhora, eu não tenho mãe! A velha replicou que não tinha mesmo, se não viesse antes que morresse.
Resolveu ir para que ela visse que não era o seu filho e ia dar um susto nela, pensou e foi logo dizendo na portaria que viera visitar a mãe. O porteiro assustou-se: filho? Mas a mulher, na porta, reconheceu-o com o pacote de maçãs. A estranha encheu-lhe de beijos, antes mesmo de se explicar o engano – estava descartada a prova material, por assim dizer. Como dizer que não era seu filho?! Deixou as maçãs no quarto da senhora, tomou um café amargo no refeitório e voltou outras vezes ver a idosa que lhe lembrava de alguém do passado. No prontuário dela nenhum filho lhe constava, porém, na vida dele, mãe também não.
Publicado no A Tribuna Piracicabana em 24-12-10

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