Conteúdo

O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 4 de junho de 2011

O relógio

Ponto de leitura






Agradeço a participação de todos que estiveram no encontro de leitura sobre minha obra O Seminário. Foi bom ver a reação dos leitores de perto. Quê bom que chegou até vocês. A inspiração do cenário e da obra foi o seminário Seráfico São Fidélis, onde estudei há trinta anos. Agradeço a todos e à minha esposa Luzia Stocco que organizou e preparou o bolo e o chá de quentão.
O texto de hoje é sobre um tio meu do qual “roubei” as iniciais, o recentemente falecido Laurindo Todeschini (pra vc eu conto) e de certa forma essa ideia me fez nortear e reescrever um texto antigo, antigo como os relógios. Espero que curtam!
O relógio
O tio L.T, suas iniciais, mas o chamo de Lete, colecionava coisas e histórias. Começava e aí vinha o inventário de memórias e amontoados do porão.
Tartamudeava por minutos vazios, de tênues porquês. Vi reluzir um metal em sua cintura, um instrumento de precisão, aço puro, engrenagens, molas sem fadiga, que marcava o eterno ciclo do tempo. Então levantou pelas correntes douradas e finas o estojo arredondado das horas precisas. Um autêntico relógio de marca.
Na infância eu quebrava brinquedos e ainda não realizara o desejo de ver “com as mãos” um relógio por dentro. Aquelas engrenagens virando outras de vários formatos e tamanhos, num ajuste perfeito. Meu pai jamais dera um em minha mão, mas mostrava o da parede e me acalmava com aquele brinquedo de adultos chamado de “téi-téi”, não sabia ainda que “não era uma espécie de grilo”. Lembro-me de que o tio ficava virando um dispositivo no relógio, pondo-o na orelha vez ou outra. Era isso que fazia à noite antes de dormir.
Olhei na sua mão e rapidamente guardou o relógio dentro de um bolso próprio na calça, antes de verificar as horas e de que eu fizesse perguntas.
Então contou de um relógio carrilhão que veio no navio, de pêndulos dourados. Não vi nenhum dentre os guardados no porão. Fora roubado, disse entristecido. O ladrão noturno levou a raridade. Somente o relógio fora levado, apesar de enorme. Caiu-lhe uma lágrima que se conteve num sumidouro de emoções. Não era de chorar e disfarçava perto de crianças.
Num tempo sem automóveis, não o carregariam por muito longe; porém ninguém viu o enorme relógio por vinte anos. Vinte anos! As casas e toda região vasculhadas pela polícia em busca do raro objeto, de valor sentimental, de cuja caixa cantavam pássaros mecânicos, diferentes a cada hora. E...?
Fora deixado no mato pelo ladrão. Vinte anos no relento. Sob chuva e sol. No mato, ali perto e ninguém o viu camuflado na vegetação, numa forquilha de pau-brasil, em perfeito estado de uso e conservação. O relógio estava intacto, a madeira não se estragara, ficou mais forte e o relógio marcava horas nesses vinte anos, inclusive as de horário de verão. Como? Com o balouçar do vento, acionava o pêndulo que movimentava as engrenagens do relógio, marcava as horas...
Pobre tio, como o relógio roubado são os sonhos, e este texto como a miniatura das horas, que vou acertando à noite...
(Publicado hoje, 04/06/11 no jornal A Tribuna Piracicabana)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é valioso. Grato.