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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 13 de agosto de 2011

Leitura de jornal



Amigos, agradeço pelas visitas semanais recebidas. O texto de hoje é sobre leitura de jornal. Acho que os jornais deviam dar espaço à literatura e aos gêneros literários, sem deixar sua vocação pricípua de ser veículo de informação; não é o que ocorre. O mercado voraz como dragão pauta-se por um determinismo econômico e uma pressa britânica de o que vale é o que se lê a grande massa, seja bom ou ruim, se sair sangue melhor - jornal é para forrar gaiolas mesmo. O status quo joga com uma cultura do nada, em que só se sabe o que dá um calorzinho no coração e uma rápida arejada nos neurônios, uma leitura de barbearia, de verborragia política ou amenidades de coluna social. Mas amigos escritores, digo aos que escrevem por amor, sempre haverá o nosso espaço se escrevermos com essência e falarmos na abordagem certa - o que é difícil. Nosso espaço, mesmo que esquecido ou relegado pelos jornais, sempre estará no coração de quem lê e um dia, se viermos a vender livros ou reconhecidos, será pelo nosso valor, não pela propaganda. Espero que curtam Leitura de jornal, um contraponto que fiz com um texto que li "enaltecendo" um tal jornal, o fiz pensando no lado do leitor pobre. Nota sobre o quadro ao lado: 1881-1973, France, Paris, Musee Picasso

Leitura de jornal
Não sou um leitor de jardim, nem meu cachorro traz o jornal na boca. Saio de casa pelo corredor da vila, a minha é a última casa geminada. Da janela meu vizinho passa o jornal do dia e adverte para devolver na hora do almoço, a mulher quer ver novela.
Pelas casas que passo veem-se exemplares enroladinhos lançados pelo motoqueiro, parecem que crescem com a grama ou chegam por encanto, mas eu tenho de afanar no seu Caetano ou ler na banca de revista, diante dos olhos do português, como criança a ver doce no balcão. Dos meninos que ficam olhando as peladonas que ele expõe, não reclama. Lá fico a imaginar o que tem nas folhas de dentro, mas vou levando os meus livros de sebo e o jornal de ontem para suportar a vida de hoje – exceto hoje com o jornal do seu Caetano.
Em tempo de férias os jornais em rolos ficam como papiros em língua desconhecida, herméticos, rolam e caem no chão dos jardins sob as intempéries. O dono da banca do jornal tem o poder de guardar esses volumes dobrados e os devolve depois, se não os vender.
Sou um leitor peripatético*, vou pelas ruas com o jornal na mão, desviando das sombras. A primeira página que leio é a última, o obituário. Por quê? Não posso visitar tantos parentes perdidos por esse mundo e alguns morrem sem avisar. Pranteio-os. Às vezes até um amigo que nunca mais mandou recados ou comentários para o meu blog e lá os encontro em foto, rindo. Quando tiro os olhos do papel, vejo carros cruzando daqui e dali, um motoqueiro crispando os olhos para mim, não adianta eu não vejo manchete. Depois de atravessar a avenida continuo a leitura na outra página. No café da esquina o pessoal já me roubou a sessão de futebol e, se os comentários da novela da dona ficaram junto, eu me ferro com o seu Caetano. Mas esse pão-duro vai usar o jornal para forrar para o cachorro mesmo. É cego como uma porta!
Ao ler andando os ventos amassam e dobram o jornal, é preciso amiudá-lo como dobradura para ler só a matéria, com um crivo bom, sem perder a linha. Se garoar, os respingos na lente prejudicam-me a atenção. Um patamar despercebido a minha frente embaralham as letras, faz pular parágrafos inteiros, mas equilibro-me por artigos. Por vezes, uma frase prende-me a atenção – foi lá perto de casa! Uma pessoa morta ao atravessar a rua!
Temo em passar para outra página, antes me detivesse na de rosto. Vou descendo pela rua do acidente, fechei o jornal do vizinho e guardei na mochila. Sei que vou ver algo terrível, mas leitor de jornal tem de encarar isso às vezes, pelo jornal ou pela TV seria mais fácil, mas...
Lá um contingente de curiosos e no centro do círculo um corpo encoberto por jornais. Era mais uma foto para o jornal do dia seguinte, mas eu queria ver o rosto e não aquele embrulho. Fui chegando, contido, como parente e descobri o rosto da vítima – Seu Caetano! Gritei de susto. E o atropelado retrucou: Cadê o meu jornal, salafrário? – mas, seu Caetano, era o jornal de ontem!

*Discípulo da escola Peripatética fundada por Aristóteles, em aulas feitas durante as andanças pelo peripatoi, uma alamenda situada nos jardins do Liceu, pela manhã, nas quais se discutiam questões filosóficas mais profundas ligadas à metafísica, à física e à lógica.

2 comentários:

  1. Na categoria de leitora peripatética, que já bateu em poste, porque não desgrudou os olhos do livro, só posso dizer que seu texto retrata perfeitamente a situação. Parabéns, Camilo!

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  2. Olá primo, peripatético, termo usual, já perdido nos meus tempos filosóficos, agradeço os seus últimos comentários. Jornal, um retrato diário do ontem.

    abraços,
    Leandro

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