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sábado, 19 de novembro de 2011

O sequestro das velhinhas

Amigos, grato pelos inumeráveis acessos desta semana e pelos comentários sobre Pardal. Hoje posto um texto que compus ouvindo de uma amiga que tem uma fala bem viva com caretas e gestuais quando quer contar algo inusitado, peguei o gancho e escrevi o texto abaixo:

O sequestro das velhinhas


Na cidade pujante e de alguns pináculos e cruzes antigas duas velhinhas ainda saíam com suas bolsas e memórias, vagas e persistentes, àquelas horas da noite. Tinham assuntos que transbordavam à velhice e aos anos que lhes saíam pelo ladrão. Naquele trecho, mesmo próximo à igreja, várias velhinhas terminaram só com as alças das bolsas roubadas na mão. Era num atravessar de rua, no ponto de ônibus e o meliante agia sem escrúpulos, surrupiando idosas incautas com algum objeto cortante. Era o tempo de suspirar por mais uma perda e já era. A dupla de idosas se protegia com escapulários no pescoço e muito assunto em comum, falavam sem parar, o falar dava-lhes forças contra o medo e, assim mesmo, foram sequestradas duas vezes por engano e devolvidas no mesmo ponto – ali “um perigo”. Ruas escuras e escusas, de barracas de revistas em penumbras por onde zanzavam prostitutas e travestis e carros com sinais de faróis saíam atritando os pneus.
Após a missa festiva o padre fechava a igreja e se escondia no sacrário, apagando as luzes de fora. Com o “Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe” os despedia, temendo o adiantado da hora e era cada um por si e as velhinhas por elas próprias. As duas corriam conforme velhos correm, meio cadentes, e chegavam a um telefone público para chamar o táxi.
Ana chama o carro, que vai parar no lugar combinado, de sempre, reconhece-o entre os fantasmas da catarata. Reconhecem? Às vezes uma convence o olhar da outra que mal vê o que pensa ter visto, como quando entraram no carro do sequestrador. “O carro, Ana”; “Já vou indo, Paula. O moço adivinhou e veio mais cedo. Que bom”.
Assim entraram porta adentro, fechando-as e travando, jogaram para trás algumas malas incômodas que ficaram no banco, e então se instalaram como passageiras e deram a ordem de partida. Mas qual? Deram por si e viam um estranho no volante a vigiá-las pelo retrovisor, não era o taxista, era um sequestro! Antes que pudessem gritar, entrou a cúmplice com um sorriso de esgar, e esta sim, deu ordem de partir ao motorista, talvez fosse a chefe da quadrilha. O rapaz era magro, moreno, alto e ela, alta, morena e de cabelos curtos, disseram depois no distrito, na presença do escrivão Marcos, que as interpelava:
- Mas se foi sequestro, por que deixaram as senhoras na porta de casa.
- Mas roubaram nossas sombrinhas, uma vermelha e outra verde, não é Ana?
- É.
- Mas, à noite, sombrinhas?..
- É que ia chover, moço. Fazíamos novena.
O casal acusado era paroquiano e foi trazido para esclarecimentos, trouxeram também as sombrinhas e as devolveram às velhinhas falantes:
- Viu, viu? Não falei? – O casal se manifestou:
- O padre nos mandou devolver.
- Ladra confessa, né?
- ... mas não arrependida, quando precisar de carona...

3 comentários:

  1. ... e "graças a Deus" hein... complementando a fala do padre... já que as senhorinhas... ô dó... bem faço eu: adepta das rezas on-line!!
    Abraço, Célia.

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  2. senhoras indefesas... ou ladras em potência? bela crônica primo,

    abraços

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  3. rsrsrsrsrs Que texto mais carinhoso! Muito bom, Camilo! Abraço!

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