Conteúdo

O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 7 de abril de 2012

Este texto sai publicado em 28-03-2008, há quatro anos, na Tribuna Piracicabana. Eu tinha saído do engenho central, sob intensa chuva, com minha esposa, meus pais e por estradas escusas tendo em vista a dificuldade de saída, chovia muito àquela hora. Molhei-me mesmo no carro e sob guarda-chuva insuficiente. Chegando a casa, tomei banho, troquei de roupa e fiz um dos textos mais rápidos, quase que na aflição e o título ? Águas de março. Tom Jobim escreveu a letra e música numa pescaria em março também.
Nesse ano de encenação do grupo Guarantã o diretor era o Carlos ABC e quis pôr animais nas cenas da manjedoura e os cavalos para os legionários romanos. Fez parte como figurante e sua paixão é o teatro mesmo. Lembro-me ainda das primeiras cenas, antes do embargo da chuva, cena do batizado de Jesus, do outro lado, outra margem do rio, num foco de luz longo, num golpe de mestre da dramaturgia, aproveitou o cenário natural. Vejam abaixo o meu texto.
Águas de março (Publicado em 28/03/08)
Semana santa e os céus ainda mandavam água. Como todo ano a paixão de Cristo é apresentada na cidade, com figurantes e atores apaixonados pela arte do teatro. A peça conta com o trabalho de formiga e do gênio do diretor, no antigo engenho entre as ruínas dos galpões e fornos, onde monta um cenário ao ar livre. Em várias cenas, junto à manjedoura, como aguadeiro nas Bodas de Cana, à Hitchicok, o diretor, ator, faz emergir as cenas do drama, da trama presente no inconsciente coletivo da Cristandade. Minha esposa, muito sensível, chora nas cenas mais
dramáticas. E eu sempre atento aos detalhes, vejo as cenas se passarem aqui e acolá – olha lá, olha lá, o personagem histórico e contemporâneo! Jesus pode ser o seu próprio vizinho!
Meus dois pais, maiores de setenta e oitenta, católicos, assistiam fiéis, pela primeira vez, aquelas cenas tão tocantes e de tão grande simbologia. A doçura do burrinho carregando Maria e o menino Jesus em fuga, contrastando com os cavalos a galope na matança dos inocentes. Que força dramática! Aqueles soldados romanos representando o império da impiedade com a força dos cavalos em assalto sobre a multidão desarmada, atentando contra a vida humana. A tropa de choque enfileirada para impedir e manter o poder de Herodes que discute com o rebelde João Batista.
Mas quando João profere a fala de que ele batizará com água. De fato, a chuva aumenta de tal forma que os expectadores descem da arquibancada já úmidos. Interrompe-se o espetáculo ao ar
livre. O povo quer descer a arquibancada e sair. Olho para meus pais, sentados, protegidos com uma sombrinha fina. Minha mãe que tem medo de chuva, começa com as jaculatórias como “Jesus, Maria, José!” e “Nossa Senhora!” a cada relâmpago. Chego perto e tento protegê-los de algum acidente, pela possível pressa dos transeuntes umedecidos. Minha mãe vira-se para mim e diz que “São Pedro acabou com a paixão de Cristo”. Meu pai, parkinsoniano, treme mais quando lhe afeta alguma emoção ou preocupação e tremia muito. Olhei para o cenário e para os atores que se misturavam ao povo. Devaneei-me. Avancei a arena. Montei um cavalo, derrubando um soldado romano, fui até Pilatos e lhe tomei a capa, voltei a galope e cobri meu pai trêmulo. Jesus Cristo protestou e eu lhe tomei também a túnica para cobrir minha mãe. Enquanto isso minha esposa com uma sombrinha cobria o burrinho da cena com José e Maria. Ela adora a burros! O
burro começou a segui-la pela arena molhada até o galpão coberto – era um animal fácil de contracenar, manso, dócil, só faltava falar, pois não conseguia decorar o texto. Naquele alvoroço de chuva forte e ao ver meu pai tremendo – achava que era de frio - o diabo se achegou, tentou carregar meu pai, dizendo: “calma, calma, eu levo ele, ele precisa se aquecer!”. Minha mãe quis impedir, mas Jesus a convenceu que era melhor o diabo levar meu pai mesmo, ele era mais
forte. O levou na frente e ela o seguiu. O seguiria até ao inferno. A chuva forte não parava.
Era emocionante. Intrometi-me entre os atores e cenários que tanto mexeram comigo. Nunca tivera coragem de ser ator, mas agora o cenário estava ali, sem diretor. Vi Jesus cara a cara! Quando cheguei perto e a chuva aumentou os soldados correram. Covardes! Levei Jesus a salvo para um lugar seguro onde não o encontrariam. Deixei-o protegido da chuva no palácio de Herodes, junto com Judas Escariotes. Voltei para minha esposa e meus pais já aquecidos num galpão ao lado de Pôncio Pilatos. O tribuno discorria sobre o discurso não feito, e dizia aos presentes, que diante daquela chuva toda “lavava as mãos”; mas se quisessem, poderiam crucificar Jesus no dia seguinte. Ao sair com meus velhinhos e esposa encontrei com o bom ladrão, um fiscal do imposto de renda, que me deu carona até o carro. Montei no coche, puxei as rédeas e fomos embora. Atchin!
Se rio, também homenageio. No barulho da chuva e trovões de diálogos não-verbais e inaudíveis, os soldados e reis, solidários, desfizeram-se de seus mantos e túnicas para proteger meu pai, que apesar de bem agasalhado ainda tremia. Era o mal de parkinson. Quem sabe se a paixão de Cristo
tivesse ocorrido no Brasil, não seria diferente!? Não faltou agasalho, cuidados e o pão de Cristo para aquecer o coração de um velho desconhecido. “Tudo que fizerdes ao menor dos meus, a mim o fareis”, disse-o Jesus. Eu sou grato.
Recado: Dispomos de exemplares do livro recém lançado As ciladas do , literatura de ficção, à venda. Aos que se interessam e ainda não o tem, mande-nos endereço para envio postal no e-mail camilo.i@ig.com.br, com endereço e depois passamos os dados para depósito no valor de R$15,00. Grato aos incentivadores e aficcionados pela leitura.

3 comentários:

  1. Seria cômico... não fora a realidade trágica ultrajante dos fatos! Feliz Páscoa, Camilo!
    Abraço, Célia.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Célia e feliz páscoa com um grande abraço.

      Excluir
  2. Camilo, adorei esse texto. Fez muito bem em postar no blog. Abraços pra você e sua família!

    ResponderExcluir

Seu comentário é valioso. Grato.