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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 2 de novembro de 2013

Amigos, amigas, grato pelos acessos a este singelo blog. Espero que seja agradável a leitura.
Blogueiro e autor de Crises do Filho do meio
Dona Baratinha

Dona Baratinha diz que tem sete saias de filó... mas anda com roupa de viuvez o tempo todo, num luto vivo de tecido lustroso e piedosa na igreja de santo Antonio, seu santo de devoção de terços diários e um guarda-chuva preto que faz as vezes de bengala, não quis trocar por sombrinha colorida, não. Aquele objeto guardava lembranças e protegia das lágrimas, era do falecido. Falecido, Dona Baratinha?
- É.
A resposta seca mostrava como lidava com as realidades da vida marcada por rituais. O tempo não existia para ela, os ponteiros dos relógios eram meros marcadores da próxima missa na tevê ou de trazer o copo com água para benzer. O tempo, podia se dizer, são momentos de um ritual, muitos, imperceptíveis que se fazem sem a devida consciência, até as formigas têm os seus rituais.  Dona Baratinha punha termos a eles e rezava como uma sacerdotisa em seu sacrário doméstico ou mesmo na igreja de santo Antonio. Cuidado com o terço de ouro, mãe? Advertiam os filhos. Que nada. O último ladrão motoqueiro que tentou roubar levou uma boa surra de cabo de guarda-chuva, a mulher o pegou com o cabo e o puxou com uma força de velha hostil e depois de caído os transeuntes tiveram que apartá-la da “vítima”, enquanto a moto ligada em queda girara as rodas sem chão. Quebrou o guarda-chuva e quiseram lhe dar outro, não, mandou a conserto e trocou varetas e lona, que tinha de ser tudo em preto e devia estar pronto para a próxima missa na igreja de santo Antonio, ia mandar o padre rezar as missas ao falecido, as quais fazia questão de pagar com dinheiro de sua pensão. Não se pode dever a santo, dizia, e mais, ao santo que beijava os pés todas as vezes que lá ia.
Vendo dona Baratinha no primeiro banco o padre amainava o discurso e não esquecia as intenções da missa e ela o orientava com o olhar solene e ritualístico, e era de se saber que o guarda-chuva a acompanhava mesmo sem nuvens no céu. Já beijara os pés do santo e agora rezava sentindo o cheiro de madeira dos bancos e lá no altar via a luz vermelha iluminando uma caixinha onde o padre gordo punha e tirava hóstias, como guardião da fé, como se Deus desse voltas no bairro todo e parasse ali, e que o padre pudesse mexer no tempo como se mexe em relógios de camelô. Quando sentia o pão sagrado em sua língua era tudo o mais sem valor, até mesmo o que se escreve sobre ela. É a fé, a instância de seu entendimento, donde não se pode pôr ou tirar sem complicar.
Os meus momentos passam com as cautelas de um relógio oco de toc-toc que não me sintonizam, tudo tão passadiço que parece relógio de camelô, de dois por um – agora complicou, né? Estou tranquilo, escrevo enquanto Deus me der linhas nessa vida que é uma mão que escreve sozinha, porque dona Baratinha já mandou rezar as missas, trocar a foto do túmulo do falecido e deu outras orientações ao padre e, ainda, repassou algumas que o papa não receberá.
Da última vez que passei pela sua calçada parou de varrer e disse-me que rezava algumas ave-marias pelo moço de chapéu também. Uns usam guarda-chuva, outros relógios, brincos, óculos, chapéu e solidéu.
 
 

2 comentários:

  1. Um perigo essa Dona Baratinha... Penso aqui na roubada em que se meteu o "João Ratão"... e, tantos outros que ainda cairão nessa... de solidéu e tudo!
    Abraço.

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    Respostas
    1. Célia, ela é inconfundível, não é mesmo? ahahah. Abç e grato pelo comentário.
      Camilo

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